fonte: Folha de SP
por Cláudia Collucci, repórter especializada de Saúde
Alguém precisa de algum motivo para beber ou não beber uma cerveja ou realmente dá alguma importância para as dezenas de estudos publicados sobre o tema? Na semana passada, a notícia de que os bebedores de cerveja atraem mais mosquitos bombou nas redes sociais. Além de velhas (há estudos desde 2002 tratando do mesmo assunto), pesquisas desse tipo não conseguem demonstrar a relação de causa e efeito. Portanto, não mudam nada na sua vida.
Mas cerveja é um tema pop, deve render muita verba para pesquisa, e frequentemente há trabalhos sendo publicados, reportagens feitas e amplamente compartilhadas. “Beber cerveja pode estimular clareza mental”, “Estudo associa consumo de cerveja à longevidade”, “Dez estudos mostram os benefícios da cerveja para a saúde” e “Ciência revela que cerveja ajuda a memorizar conteúdos que você acabou de estudar” são algumas das bobagens que circulam por aí.
Esse tipo de matéria é ruim por algumas razões, entre elas o fato de não existir ciência de verdade nesses trabalhos e de não haver esforço algum para equilibrar a história com os prejuízos que álcool traz à vida das pessoas, esses sim bastante documentados cientificamente. Acidentes, câncer, abuso físico e sexual, doenças psiquiátricas, potencial aditivo são alguns dos riscos.
Não custa lembrar que o Brasil já superou a média mundial em consumo de álcool. Em 2016, o nosso consumo per capita atingiu 8,6 litros, contra a média internacional de 6,4 litros por pessoa. O país também pouco avança em políticas públicas eficazes voltadas à prevenção do alcoolismo.
Mas voltando aos estudos, a maioria não sustenta as alegações de que a cerveja (ou qualquer outra bebida) possa trazer algum benefício à saúde. São estudos observacionais ou de baixa qualidade, em que a causa e o efeito não podem ser estabelecidos. A associação estatística não é uma prova de causa e efeito. Para quem quer saber mais sobre o tema, recomendo fortemente a leitura deste texto.
E isso não é só um problema do jornalismo de saúde. A pesquisa também sofre do mesmo mal. “A pesquisa observacional é abundante e influencia a prática clínica, em parte por meio da publicação em periódicos de alto impacto e disseminação pela mídia noticiosa. No entanto, frequentemente gera achados não confiáveis. As limitações metodológicas inerentes que geram viés e confusão significam que as inferências causais não podem ser tiradas de forma confiável”, diz um trecho desse outro ótimo artigo.
Fatores dietéticos (como alimentos, bebidas e ingredientes individuais) são difíceis de serem estudados. Riscos e fatores de confusão raramente são levantados. Por exemplo, há estudos dizendo que risco de diabetes é menor para quem consome álcool, mas não mencionam que o álcool pode elevar o nível de açúcar no sangue e comprometer a função da insulina.
Além disso, estudos sobre álcool, em geral, dependem de indivíduos autorrelatando o seu consumo. Isso é pouco confiável e, portanto, limita qualquer conclusão sobre os benefícios da cerveja para a saúde. Outra questão que nunca é mencionada na divulgação desses estudos são os conflitos de interesse envolvidos. Muitos trabalhos são escritos por indivíduos financiados pela indústria do álcool e isso não fica claro para o leitor. E, muitas vezes, nem para o jornalista.
Recorrer a estudos observacionais e/ou de baixa qualidade para oferecer recomendações abrangentes de saúde ao público em geral é, no mínimo, temerário. São poucos os casos na medicina em que eles acumularam evidências suficientes para se tornarem até mais fortes do que alguns ensaios clínicos randomizados. O conjunto de pesquisa que associou o tabagismo ao câncer e outros problemas de saúde é um deles.
A pergunta que eu tenho me feito como jornalista de saúde é a seguinte: até quando vamos continuar reproduzindo estudos que não trazem impacto algum à saúde das pessoas, ou, quando trazem, é, em geral, negativo, fazendo alardes infundados porque, também, não conseguem associar causa e efeito? Por exemplo, aqueles que condenam alimentos como o ovo, o azeite, o leite, a farinha de trigo etc. Isso é fazer um jornalismo ético e responsável?